Cotinha olhou para os lados procurando sabe se lá o quê. Virou a cabeça de um lado para outro e começou a assoviar uma canção de roda que aprendera com a mãe e disparou a rir sozinha, aquele riso maroto de quem está prestes a fazer uma traquinagem. Olhou para o chão e viu uma pedrinha com um formato diferente e a apanhou, abriu o pequeno baú que trazia nas mãos, limpou a pedrinha na barra do vestido e a colocou lá dentro junto a outras pequenas bugigangas que ela agora colecionava.
Aquele baú tinha um significado especial para Cotinha. Ali encontravam-se seus achados mais preciosos porque foram vislumbrados com os olhos da alma e para ela eram pequenos tesouros. Pedrinhas, anéis de latas de refrigerantes, um pequeno espelho trincado entre tantos outros objetos. Mas, o que Cotinha adorava naquele baú era a foto de um moço que ela havia achado entre as fotos de família e surripiado sem que ninguém visse.
Era uma foto antiga, daquelas que o tempo já amarelou. Apesar de ser preto e branco ainda se delineava os traços bonitos daquele rapaz e ela às vezes perdia a noção do tempo, ficava admirando aquele rosto por horas a fio como se ele fosse um antigo conhecido. Era mais que uma imagem, mas ela não conseguia explicar o que se passava dentro do peito. A foto só perdia espaço no seu coração para as pedrinhas de jogar baliza. Cada uma escolhida a dedo no quintal para encaixar perfeitamente em sua mão. Era seu jogo solitário preferido, gostava de ver as pedrinhas sendo lançadas ao ar e a habilidade que tinha para não deixar que elas caíssem.
Cotinha levantou novamente o olhar, dessa vez procurando no quintal aquela goiabeira que vivia abarrotada de frutos, devia ser hora do almoço e sua barriga estava fazendo aqueles barulhos engraçados que só as barrigas com fome fazem. Conseguiu ver de longe a árvore e saiu saltitante em direção a ela.
Parou um instante para descansar debaixo de uma mangueira frondosa e apanhou algumas folhas antes de se sentar. Amava o cheiro das coisas e achava que algumas tinham o cheiro trocado. Deus tinha se cansado de inventar cheiros e os usava em mais de uma coisa, dizia.
Um exemplo era o Jatobá. Adorava aquela massa grudenta, mas não suportava o seu cheiro de chulé. Aquilo parecia mais o cheiro de um sapato usado sem meias por dias do que uma fruta inventada por Deus.
Por outro lado, a mangueira tinha o cheiro de manga, o cajueiro, de caju e a erva cidreira, de chá, daqueles de fim de tarde que acompanhavam os famosos bolos de fubá de sua amada mãe.
Levantou se devagar. Ultimamente estava se sentindo cansada e às vezes tinha a impressão que dormia dias a fio. Devia ser anemia ou mais uma maluquice da sua cabecinha de vento que queria fazer tudo ao mesmo tempo.
Pegou seu baú com cuidado e saiu admirando as Marias-sem-vergonha que cresciam por todo o quintal. Aquelas florzinhas pareciam que nasciam do nada e davam um colorido todo especial ao lugar. Ela particularmente amava as vermelhas e vivia enchendo o cabelo com porções delas.
Finalmente chegou à goiabeira e pegou a primeira fruta que sua mão alcançou, mordeu com gosto a goiaba, mas não achou que estava nem macia e muito menos suculenta.
Pôs-se a olhar para cima, tentando identificar ali de baixo mesmo, uma fruta melhor. Seus olhos cresceram para o alto da copa e numa mistura de contentamento e excitação pelo achado, exclamou batendo palminhas:
_Nossa, que bitela!!!
Deu uma analisada rápida no tronco da árvore para descobrir por onde seria mais fácil subir. A goiabeira era antiga, todavia não muito alta, não ia ser tão difícil.Tirou dos pés os chinelinhos e enrolou um pouco o vestido para não enroscar na subida. Colocou as duas mãos num galho e quando levantou a perna ouviu uma voz atrás dela:
_ Mãe, por favor! Estou te procurando há horas. Você vai se machucar assim.
Cotinha largou as mãos da árvore e ficou irritada com o comportamento da mãe. Achava que ela estava ficando doente ou fraca da cabeça. Nós últimos tempos ela andava acreditando que Cotinha é que era a mãe e de vez em quando a chamava assim. Ainda sem se virar Cotinha retrucou:
_ Não me chame assim! Isso me irrita.Cotinha largou as mãos da árvore e ficou irritada com o comportamento da mãe. Achava que ela estava ficando doente ou fraca da cabeça. Nós últimos tempos ela andava acreditando que Cotinha é que era a mãe e de vez em quando a chamava assim. Ainda sem se virar Cotinha retrucou:
Leonor sorriu e respondeu com calma:
_ Desculpe-me, prometo não fazer mais isso se você não sumir assim. Vamos voltar e preparo para ti um belo chá.
Cotinha nem se lembrou da rusga e respondeu:
_ Só se tiver bolo de fubá!
Leonor assentiu com a cabeça e deu o braço para voltarem para a casa. Assim, caminhando em silêncio ela ouvia o barulho da passarada no quintal e dava vazão aos seus pensamentos e angustias.
Desde que a mãe adoecera, os papéis se inverteram. Os sintomas do Alzheimer a levaram novamente para sua fase de meninota, que ainda corria pelo quintal. Leonor preferia ver a mãe assim a, nos dias em que ficava ausente, muda, como se a alma tivesse abandonado o corpo sem nenhum aviso.
Quando chegaram em casa, Leonor tentou ajudar a mãe a tomar banho mas , esta se recusou dizendo que já era uma mocinha e sabia se lavar muito bem sozinha. Combinaram então que Cotinha não trancaria a porta do banheiro, e assim feito foi para a cozinha assoviando uma velha canção de roda que aprendera com sua avó.
Preparou o bolo com todo cuidado e o colocou para assar. Fez o chá com erva cidreira e ele por sua vez perfumou toda a casa. Colocou numa caneca o líquido fumegante e encaminhou-se para o quarto da mãe. Entrou devagar e percebeu que ela já havia dormido abraçada ao baú que tanto amava.Ajeitou sua cabeça no travesseiro e retirou o baú bem devagar para que não acordasse. Ela precisava descansar.
Abriu aquele velho baú com cuidado e no mesmo momento seus olhos se encheram de lágrimas. No meio de tantos objetos sem valor, estava a foto de seu pai ainda moço.
Os sintomas da doença fizeram perdidos para Cotinha um tempo e lembranças que não voltariam. Mas, entre seus achados mais preciosos estava a foto de um homem que foi seu amor por toda uma vida, seu companheiro mais fiel e que nem a doença conseguiu aniquilar.
Leonor fechou o baú, deixou-o ao lado da mãe e saiu bem devagar. Sabia que nunca entenderia o real significado da vida e muito menos do amor.
2 comentários:
é um dos contos mais emocionantes que já li...uma simplicidade inicial misturada com ingenuidade infantil que nem percebemos que se tratava de um episódio familiar tão comum em nossos dias...amei...lindo demais
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